159 - Código de honra ( ZEN BUDISMO - CONFUCIONISMO - XINTOISMO )
Domingo, 6h30. Enquanto as crianças da idade dele ainda
estão sob as cobertas, o pequeno Daniel Yamamoto, de 7 anos, já está pronto
para enfrentar duas horas de muita disciplina, manuseando seu shinai, uma
espada de madeira, com a cabeça escondida sob o men, um elmo feito de resina e
metal. Daniel maneja seu shinai em meio a um grupo de pessoas pelo menos 15
anos mais velhas que ele, em São Paulo. Ele é o mais jovem praticante
brasileiro do kendô, arte marcial cuja origem remonta aos duelos medievais
japoneses. As razões da sua disciplina extrapolam o gosto que ele possa ter
pela prática. Daniel é descendente direto da linhagem Yamamoto, samurais que
fizeram história na cidade de Akita, situada no norte do Japão.
Para entender como o sangue de samurai pode ainda pulsar nas
veias de um garoto brasileiro rodeado de videogames e das facilidades do mundo
moderno é preciso voltar pelo menos mil anos e mergulhar na Idade Média
japonesa. O termo samurai, que significa “aquele que serve”, começou a ganhar
importância no Japão por volta do ano 1100. O Japão medieval, um país agrícola
e isolado do resto do mundo, estava dividido em propriedades rurais.
As disputas envolvendo a demarcação das terras e as brigas
pelo poder aconteciam no dia-a-dia. O governo central era distante e a figura
do imperador, mais divina que política. Como resultado, os donos de terra – os
daimyô – acabaram criando exércitos particulares para defender seus domínios ou
para empreender ataques às terras alheias. Esses pequenos exércitos
particulares eram formados por samurais, guerreiros forjados na arte da luta de
espadas. Além de proteger os feudos – chamados de “han” –, eles garantiam
a ordem interna e deliberavam sobre algumas questões administrativas.
Nessa mesma época, no início do século XII, duas novas
religiões – o zen budismo e o confucionismo – chegaram ao Japão e se misturaram
ao xintoísmo, o[PB1]
credo original japonês. Os princípios do budismo e a filosofia de Confúcio
começaram a influenciar o modo de vida japonês. Essa fusão de doutrinas foi fundamental
na formação filosófica e espiritual dos samurais. “O xintoísmo pregava o amor à
pátria e à família, o budismo propunha a auto-análise e a busca do caminho do
meio e o confucionismo estabelecia os padrões de vida em sociedade”, diz
Tadashi Tamaki, presidente da Confederação Brasileira de Kendô. O Bushidô,
código de ética seguido pelos samurais, bebe nessa tríade filosófica. “O
xintoísmo e o budismo se fundiram de tal forma que dividiam espaço no mesmo templo.
Até hoje é possível encontrar, no Japão, alguns templos com
imagens e símbolos das duas crenças”, diz Leiko Gotoda. Ela foi a tradutora
para o português de Musashi, romance sobre a vida do samurai mais famoso do
Japão, lançado em 1999 no Brasil.
Apesar de seguirem as mesmas regras básicas, havia
diferenças no estilo de luta entre os samurais de um feudo e outro – e até
mesmo entre grupos dentro do mesmo feudo. Essas dessemelhanças acabaram gerando
diferentes clãs de samurais. Se algum guerreiro de destaque desenvolvesse
particularidades no seu estilo, ele fundava uma casa de samurais com o nome da
sua família. Filho de samurai tinha que ser samurai – a sociedade japonesa era
dividida em castas. Quem não nascia samurai podia tentar se tornar um,
trabalhando como ordenança para os clãs em troca de um longo e árduo
aprendizado.
Ao longo dos anos, os samurais foram ganhando espaço e
importância e começaram a se aproximar da corte imperial. Até que, em 1192, o
samurai Yoritomo Minamoto tornou-se o primeiro xogun – que significa “general”
–, um militar escolhido para cuidar da administração e da segurança do país.
Inicia-se aí o período dos Xogunatos, que manteria o Japão por mais de 700 anos
sob o comando de três clãs. O cargo de xogun era vitalício e hereditário e
podia ser conquistado pela força, desde que o imperador aprovasse a família
vencedora.
Nesse período, a casta dos samurais passou a ocupar o topo
da hierarquia social no país, embora não fosse a mais rica. Havia poucos
samurais abastados. Eles eram reconhecidos na rua por portarem duas espadas
presas ao obi, a faixa que segurava o kimono. A mais longa, katana, tinha uma
lâmina com 80 centímetros de comprimento e era usada para lutas em locais
amplos. A menor, vakisashi, media entre 50 e 60 centímetros, conforme a
estatura do samurai, e servia para lutas em espaços fechados. Mas a regra nem
sempre se cumpria.
O período dos Xogunatos foi marcado por conflitos
sangrentos. O objetivo do governo central, representado pelo xogun, era
unificar o país. O dos daimyô era defender a sua independência em relação ao
xogun. A maior batalha foi, provavelmente, a de Sekigahara, em 1600. Em seis
horas de confronto, morreram 35000 homens só do lado derrotado.
A relação dos samurais com a morte merece uma análise à
parte. Para eles, matar e morrer era tão corriqueiro quanto comer uma tigela de
arroz. Eles estavam preparados para batalhas e duelos 24 horas por dia. O
jornalista José Yamashiro afirma, em seu livro A História dos Samurais, que, na
hora de lutar para defender o seu daimyô, “a vida do samurai era menos valiosa
que a pena de uma ave”. Segundo o sociólogo Benedicto Ferri, autor de Japão, a
Harmonia dos Contrários, “essa tranquilidade diante do fim da vida, um momento
tão temido pelos ocidentais, vem do Bushidô”.
Desde que tinham a idade do pequeno Daniel, os samurais
absorviam os conceitos budistas da impermanência e da reencarnação. Acreditando
desde cedo que a morte não é o fim, mas apenas uma porta de passagem para uma
nova fase da existência – que poderia ser atravessada a qualquer momento –,
ficava mais simples encarar com galhardia o próprio fim.
Os padrões de conduta expressos no Bushidô também
contribuíam para essa visão da morte como um evento natural. O código de honra
dos samurais pedia motivos justos para que a morte acontecesse. Exigia que o
momento derradeiro fosse vivido com honradez. E assegurava que não havia honra
maior para um samurai que morrer defendendo o seu senhor ou a sua própria
reputação. A familiaridade com a morte e a sua aceitação eram tão grandes que
um samurai preferia se matar a ser preso pelo inimigo.
O ritual do seppuku – também conhecido como harakiri –, era
obrigatório quando o samurai cometia uma falha que manchasse o seu caráter. O
Bushidô ensinava que a desonra é um mal que nunca cicatriza. O ritual era
levado a cabo tanto para expiar um ato pessoal ou familiar vergonhoso quanto para
que o samurai não servisse a mais ninguém quando o seu senhor morresse – a
lealdade era um conceito caro aos guerreiros. O suicídio era tão litúrgico
quanto a conduta em vida.
Realizava-se o seppuku com uma adaga. Ajoelhado, o samurai
perfurava o próprio ventre e dilacerava-o em forma de L ou de cruz até as
vísceras ficarem expostas. A exposição das vísceras simbolizava que ele estava
mostrando a sua verdade, oferecendo o seu interior para ser purificado. Era uma
morte extremamente dolorosa. Por isso, assim que as vísceras saíam do abdômen,
outro samurai, escolhido pelo suicida, decepava-lhe a cabeça, como um golpe de misericórdia.
O padrão de conduta dos samurais foi reforçado no terceiro
Xogunato, conhecido como Era Tokugawa, quando o Japão foi finalmente unificado.
Ali os samurais viveram o seu auge e também a sua derrocada. Valorizados pelo
desempenho nas batalhas de unificação, eles consolidaram a imagem de heróis valorosos
e destemidos.
Ao mesmo tempo, com as reformas administrativas e o início
da pacificação no país, a maioria deles perdeu o emprego. O que se viu foi uma
grande quantidade de samurais peregrinando pelo país, à procura de um novo
senhor ou então trabalhando temporariamente para diferentes senhores. Eram os
chamados ronins. Sem recursos financeiros, vários clãs se desfizeram. Alguns
guerreiros foram fazer outra coisa: trabalharam na reforma dos castelos,
viraram calígrafos, escultores, mestres da cerimônia do chá.
Outros continuaram investindo na arte de guerra, e o número
de duelos cresceu. Isso porque uma das formas de aperfeiçoar a própria arte era
desafiar membros de outro clã. Funcionava assim: o samurai queria chamar a
atenção de algum senhor. Então, chegava em um local onde havia uma casa famosa
de artes marciais e desafiava seu líder para um duelo quase sempre mortal. Quem
decidia se o perdedor ia morrer ou não era o vencedor. Ao vencer, o samurai
começava a ganhar fama pelo país.
O descendente direto da casa desafiada sentia a honra da sua
família ofendida com o duelo perdido e desafiava o vencedor, criando assim uma
sequência praticamente interminável de duelos entre famílias e linhagens. Em
não muito tempo, os duelos foram severamente reprimidos pelo governo central.
Sem guerras e sem poder duelar, os samurais começaram a escassear.
A Era Tokugawa e o Xogunato (governo militar feudal)
acabaram em 1868, com a concentração do poder na família imperial e a abertura
do Japão para o resto do mundo. Enquanto o país se modernizava rapidamente,
alguns hábitos se pulverizavam. Tanto que o tirano Yoshinobu, ao ser
derrotado, não praticou o seppuku para defender a própria honra. Pediu
clemência e ganhou asilo em uma pequena província, onde se dedicou ao
artesanato e à produção de bicicletas.
Com a abertura dos portos, começou a entrar no Japão uma
grande quantidade de armas de fogo. O governo, já instalado em Tóquio,
organizou um exército nacional institucionalizado. A espada já não tinha mais
utilidade como arma de guerra. Nem os samurais tinham mais espaço como
guerreiros. No início do século XX, eclodiram revoltas regionais de samurais,
que viam sua classe ameaçada. Até que o governo declarou o fim da casta e
proibiu que as pessoas andassem com espadas na rua.
Várias dessas espadas foram destruídas e outras, guardadas
como objetos de adoração. Pouco mais de meio século depois, a tradição dos
samurais sofreu novo e duro golpe. Com a derrota do Japão na Segunda Guerra
Mundial e a dominação americana, todas as armas do país foram confiscadas,
inclusive as espadas de samurais que vinham sendo passadas de geração em
geração durante séculos. Na década de 60, parte dessas espadas foram devolvidas
às famílias. A maioria, no entanto, acabou sendo destruída.
A espada de Daniel, o jovem descendente de samurais, está
guardada em Akita, sob os cuidados do avô. “Não havia motivo para trazê-la ao
Brasil pois, antes do nascimento de Daniel, éramos quatro mulheres da família
morando no país”, diz Yoshiko Yamamoto, tia do garoto. (E mulheres, seguindo um
tipo de discriminação comum na cultura japonesa, não podem ser samurais.)
Daniel garante que, quando crescer, vai ao Japão buscar a relíquia que lhe
pertence. Palavra de samurai.
O caminho da espada
No Japão feudal, a espada era cultuada como uma divindade.
Sua forja levava meses e cumpria um minucioso ritual. Cada artesão responsável
pela fabricação das lâminas assinava seu nome no cabo da espada. Eram trabalhos
tão personalizados que reconhecia-se um sabre pelo estilo do forjador, como se
reconhece um quadro ou uma escultura. Ao iniciar a confecção de uma espada, o
artesão fechava o ateliê com uma corda de palha de arroz para afugentar os maus
espíritos. Durante a forja, ele se abstinha de álcool e do contato com as
mulheres.
Utilizava-se o minério de ferro, recolhido nas margens dos
rios, como matéria-prima. Num primeiro momento, ele era misturado a folhas de
pinheiro e fundido em placas, em fornos artesanais. Na verdade, obedecia-se a
uma seqüência de processos de fundição que podiam durar semanas e que eram
levados a cabo até o metal chegar ao ponto ideal para o início da confecção da
lâmina. Considerava-se todo o processo como algo místico. A lâmina, um
sanduíche de cinco camadas de metal, tinha a parte interna mais flexível, para
facilitar o movimento,e o gume mais rígido, para apurar o corte. Prontas as
lâminas, a espada ganhava um cabo de madeira nobre e muito leve, revestido com
couro de arraia ou tubarão, cravejado de pedras preciosas e com desenhos feitos
em ouro e prata. Cada espada tinha uma forma única e, apesar de todo o material
empregado, era leve: pesava entre 1 e 2 quilos.
A busca de uma morte honrosa
O Bushidô, o código de ética dos samurais, tinha, para os
guerreiros, mais força que as leis do Japão. Não é possível determinar o ponto
exato no espaço e no tempo em que ele surgiu. O fato é que o Bushidô se
espalhou por todo o país. Transmitido oralmente, todos os clãs de samurais o
seguiam à risca. Para o Bushidô, o objetivo da vida de um samurai era uma morte
honrosa. O espírito de um guerreiro valoroso tinha de estar constantemente
preparado para morrer. Por isso, era preciso viver cada momento como se fosse o
último. Tudo tinha de ser feito com o máximo empenho. E a morte deveria ter um
significado, não podia ser inútil. O resultado é que os samurais ficaram
conhecidos por jamais vacilarem diante do fim, nem mesmo nos momentos de maior
perigo nos campos de batalha. Um samurai, rezava o Bushidô, devia estar
preparado para vencer o inimigo sozinho, mesmo que esse fosse numeroso e as
chances de vencê-lo fossem mínimas.
Ao receber um golpe mortal, dizia o Bushidô, o samurai não
podia cair de bruços, em posição desonrosa, dando as costas para o inimigo. A
posição do cadáver era uma questão de honra para o samurai. Ele deveria encarar
o inimigo de frente, mesmo morto. O samurai, segundo o Bushidô, deveria basear
sua vida ainda pelos seguintes preceitos: justiça, gratidão, coragem,
compaixão, cortesia, sinceridade, honra e lealdade.
A arte da camuflagem
Os ninjas representam uma parte importante da história do
Japão, apesar de a semente da sua arte estar na Índia. Enquanto o samurai fazia
parte de um exército, o ninja operava como um espião. Era o anti-herói, aquele
que aceitava o trabalho sujo por ser perito na arte da camuflagem e por
resistir às condições mais adversas. A palavra ninja significa “pessoa
resistente”. O período áureo dos ninjas foi a época de disputas acirradas entre
os senhores feudais, antes da unificação do país – quando eles passaram a ser
utilizados para espionar os estrangeiros que chegavam ao Japão. O domínio que
os ninjas tinham sobre seu corpo e sua mente era tido como sobre-humano.
Treinados desde criança, diz-se que conseguiam até controlar os batimentos
cardíacos.
O lema dos ninjas era “jamais subestimar o inimigo, nunca
vacilar em batalha nem temer o oponente”. Seu método era tornar-se invisíveis.
Um bom ninja se infiltrava em território inimigo, descobria informações
secretas, matava o rival e ainda semeava a discórdia. Diferentemente dos
samurais, havia mulheres entre os ninjas. Além do manejo das armas, elas
dominavam os segredos da sedução e realizavam seus intentos durante encontros
amorosos. No cinema, a marca registrada do ninja é o traje negro. Esse era
apenas um de seus disfarces. Mas os ninjas também se escondiam em árvores,
subiam em paredes com extraordinária facilidade e ficavam horas imersos na
água, graças a uma técnica que inventaram: a da respiração utilizando um pedaço
de bambu.